Personalidade do mês: Nise da Silveira

Texto por: Miriam Tachibana e Leonardo Gomes Bernardino – Docentes do Instituto de Psicologia da UFU

 

 

Nise da Silveira nasceu em 15 de fevereiro de 1905, em Maceió. Filha de uma dona de casa, que era uma pianista talentosa, e de um pai jornalista, que era apaixonado por poesia, acabou seguramente sendo influenciada pelo apreço de seus pais nas expressões artísticas. Mas, não, Nise não seguiu carreira artística, apesar de ter recebido condecorações e prêmios na área das Artes, bem como de várias outras áreas de conhecimento, como a Saúde e a Educação. Nise, na verdade, cursou Medicina, em Salvador. Após os anos de graduação num ambiente essencialmente masculino (Nise era a única mulher numa turma de 157 homens, num ambiente universitário onde não havia nem sequer banheiro feminino), ela tornou-se a primeira alagoana a se graduar em Medicina, em 1926. No ano seguinte, Nise mudou-se para o Rio de Janeiro, onde seguiu enfrentando dificuldades, já que os alojamentos para médicos plantonistas eram exclusivamente masculinos. Em 1936, durante a Ditadura Vargas, após ser flagrada com livros “proibidos”, Nise acabou sendo encarcerada – tendo como companheiros de cárcere Olga Benário e Graciliano Ramos (inclusive sendo mencionada no livro “Memórias de um Cárcere” de seu conterrâneo). Permaneceu um ano e quatro meses cativa.

Só por esses acontecimentos já seria possível escrever uma obra em cima da vida dessa mulher, que, frente aos obstáculos, se mostrou tão resistente e resiliente. Mas a força de Nise torna-se maximamente visível quando, em 1944, ela começa a trabalhar como psiquiatra no Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro, e, ao invés de aceitar aplicar os recursos vigentes naquela época (eletrochoque, choque de insulina, lobotomia…), recusa-se a compactuar com esse tratamento que estava sendo dispensado aos pacientes esquizofrênicos. Aos olhos de Nise, tais pacientes já estavam sofrendo muito pelo aprisionamento hospitalar, por não conseguirem atender às normas sociais. Intervir junto a eles sem se ocupar do que tinham a dizer ou do que faziam seria mais uma forma de violentá-los, ideia oposta à de lhes ofertar cuidado.

Uma vez que a sua compreensão ia na contramão da Psiquiatria daquela época, Nise acabou sendo direcionada para trabalhar no setor de Terapia Ocupacional daquele hospital, onde os pacientes faziam trabalhos de limpeza, bem como serviços gerais. A ideia era a de relegá-la a um setor que não tinha tanto prestígio. Mas, mais uma vez, combativa como ela era, Nise viu ali a oportunidade de transformar aquele setor, cuja finalidade primeira era a de distrair os internados ou de torná-los produtivos em relação à economia hospitalar, em um ambiente que de fato tivesse um caráter terapêutico. Assim, talvez inspirada nas paixões de sua família pelas artes, Nise começou a disponibilizar aos pacientes, tintas, telas, argila, tecidos e diversos outros materiais que favorecessem a expressão não verbal daquela população, com a esperança de que o trabalho que esse grupo demandava não era o de contenção, mas, sim, o de expansão dos sentidos por meio de expressões artísticas. Embora tenham sido desenvolvidos vários ateliês de expressões das emoções, aquele que acabou ganhando destaque foi o ateliê de pintura e modelagem, inaugurado em 1946.

Apesar de seu trabalho ter sido inicialmente marginalizado, Nise seguiu investindo-se maximamente nele. Fazia questão de não ficar em seu gabinete apenas examinando as pinturas dos pacientes; pelo contrário, fazia-se presente no ateliê, observando os movimentos das mãos e as expressões faciais de seus pacientes-artistas. Sabia que, se quisesse de fato fazer uma reforma nos hospitais psiquiátricos brasileiros, rompendo com a lógica de que os esquizofrênicos é que deveriam ser “reformados”, precisaria de sustentação teórico-científica para aquela prática que ela ia desenvolvendo a seu modo, sem interlocutores. Foi nesse espírito que ela fotografou algumas das pinturas dos internados e enviou-as para o psiquiatra suíço Carl Jung, fundador da Psicologia Analítica. Foi também nesse sentido que, em 1952, ela resolveu levar ao grande público as obras de seus pacientes, através da fundação do Museu do Inconsciente no Centro Psiquiátrico Pedro II (que atualmente leva o nome de Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira). Ela entendia que aquelas obras todas deveriam ser preservadas para que a humanidade deixasse de tratar os loucos como seres incompreensíveis, numa esperança de que a sociedade viesse a adotar uma postura mais inclusiva em relação a eles.

Ainda assim, aflita com a possibilidade de a sociedade não ser suficientemente continente com os pacientes, após o período de internação psiquiátrica, Nise fundou, em 1956, a Casa das Palmeiras, instituição pioneira dedicada à reabilitação de pacientes egressos de instituições psiquiátricas, onde o principal método terapêutico era justamente a atividade expressiva. Pode-se dizer que o seu desencanto com a Psiquiatria de sua época foi o que permitiu que ela se tornasse precursora do que está proposto na Lei da Reforma Psiquiátrica.

Nise, que faleceu no dia 30 de outubro de 1999, conseguiu, num só tempo, conciliar questões de saúde mental, política e arte. Em tempos de pandemia, em que todos são convocados a fazerem isolamento, sendo atravessados consequentemente por sofrimento emocional, faz todo o sentido o SINTET-UFU ter escolhido Nise da Silveira como uma das personalidades de destaque. Afinal, ela deixa como legado a pista de que, em situações de confinamento, a expressão artística pode ser uma das saídas para a manutenção da saúde mental!

23 de setembro de 2020