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Os sentidos da Medida Provisória nº 792/2017 : o serviço público na mira de Temer

Ricardo Takayuki Tadokoro
Cientista social e professor do Instituto Federal Goiano

 

Ressuscitando o defunto: o Programa de Demissão Voluntária (PDV)

Já não é a primeira vez que um governo aponta como solução, em um cenário de dificuldades fiscais e orçamentárias localizadas na crise estrutural do capitalismo, o “enxugamento” da máquina pública, em que uma das várias medidas apontadas seria a redução do quadro de servidores públicos. Trata-se de uma política de matriz neoliberal, mínima para os trabalhadores e trabalhadoras e máxima para o capital.

Na última quinta-feira (27) o governo ilegítmo de Michel Temer publicou no Diário Oficial da União, a Medida Provisória (MP) nº793/2017 que institui a volta do Programa de Demissão Voluntária (PDV), uma experiência já avaliada como fracassada durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Vale lembrar que atualmente tramitam no Congresso pelo menos seis projetos que tem como conteúdo a proposta de reincorporação de servidores públicos frente à constatação de fracasso e lesão aos direitos dos que aderiram ao PDV em governos anteriores (PL4293/2008, PL4499/2008, PL5149/2009, PL5447/2009, PL3959/2015, PL6258/2005). Juntamente ao PDV, a medida provisória também prevê a jornada de trabalho reduzida com remuneração proporcional e a licença sem remuneração. A proposta do governo federal do PDV é pagar, mediante o pedido “voluntário” de demissão pelo servidor(a), 125% da remuneração mensal (valor na data do desligamento) multiplicado por ano trabalhado. A forma de pagamento dessa indenização ficará a critério do Ministério do Planejamento e poderá ser feita de uma só vez ou em parcelas. Para quem não se lembra, houve a tentativa frustrada de aprovação do PDV, ao embuti-lo na primeira edição inicial do Projeto de Lei Complementar nº 257/2016 que versava sobre o refinanciamento da dívida dos estados e medidas de ajuste fiscal.

O governo ilegítimo de Temer desta vez tenta retomar ao PDV e na estratégia de ganhar alguma adesão dos(as) servidores(as) coloca na mesma MP, as propostas de redução da jornada de trabalho e a licença sem remuneração. Entretanto, no primeiro caso, a redução da jornada de trabalho será acompanhada de redução salarial proporcional e como incentivo, o governo oferece o pagamento adicional correspondente à meia hora diária. Será permitido ainda ao servidor(a)  exercer outra atividade, pública ou privada, desde que não haja conflito de interesses entre as duas atividades. Em relação à licença sem remuneração, o(a) servidor(a) poderá ficar afastado do serviço público por três anos (prorrogável por mais três anos) e receberá como incentivo um valor correspondente a três vezes seu salário. Há uma captura e ressignificação negativa de pautas históricas da classe trabalhadora como a redução da jornada de trabalho e a licença, ao colocar alguns condicionantes e interferências que podem prejudicar os(as) servidores(as), como por exemplo, a redução salarial e até mesmo a perda de remuneração.

Tais iniciativas apontam para a redução e enfraquecimento do funcionalismo público. Articuladas com a Emenda Constitucional que congela os gastos públicos em 20 anos (EC95/16), a Lei da Terceirização (Lei nº13.429/17) e a Instrução Normativa nº05/17 do Ministério do Planejamento que trata da terceirização na Administração Pública, iremos observar o fortalecimento da inciativa privada no controle do Estado e com ela todos os impactos na qualidade, sucateando ainda mais os serviços prestados e nas condições de trabalho dos servidores públicos. Quem sai ganhando com essas medidas são as frações do capital que tem interesse em lucrar com os nossos direitos e transformá-los em mercadorias.

A falácia neoliberal do “inchaço” da máquina pública

De uma forma desonesta e intencional, difunde-se a ideia de que o número de servidores públicos no Brasil está em excesso e torna-se oneroso ao Estado. Os apologetas do neoliberalismo colocam que os gastos do Estado brasileiro cresceram demais, mas é necessário fazer a pergunta: cresceu onde e para quem?

A nível federal, o número do gasto com pessoal (mesmo que tenha aumentado nos últimos anos) está abaixo do limite estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal (50% da receita líquida). Um estudo realizado em 2015 pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) observou que a cada 100 trabalhadores brasileiros, 12 são servidores públicos, uma média abaixo de muitos países (inclusive os considerados desenvolvidos e modelos a serem seguidos) em que o percentual costuma ser quase o dobro. Dinamarca e Noruega, por exemplo, tem um terço da população economicamente ativa, empregada no serviço público. Evidentemente que o debate sobre a quantidade de servidores deve ser feita à luz da relação com a qualidade e eficiência dos serviços prestados. Podemos discutir algumas falhas como a prioridade e concentração de servidores em algumas áreas frente a outras estratégicas como educação e saúde que historicamente são deficitárias, mas definitivamente não podemos afirmar que o número de servidores(as) está em excesso e que há um “inchaço” da máquina pública.

O que a grande mídia e governos comprometidos com o capital escondem e não admitem é que o grande responsável pelo crescimento da crise fiscal e orçamentária, bem como do aumento das despesas é o sistema da dívida pública que beneficia bancos e instituições financeiras privadas. Enquanto que os gastos com folha de pagamento na esfera federal correspondem a apenas 4,2% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, o pagamento dos juros, amortizações e serviços da dívida consomem cerca de 44% do PIB.  Segundo a organização da Auditoria Cidadã da Dívida “tomando-se como base a taxa de juros média anual incidente sobre a dívida interna federal nos últimos 12 meses (calculado pelo Tesouro Nacional em 11,5% ao ano), vemos que, sobre esta dívida de R$ 4,728 trilhões, deve ter incidido juros de, aproximadamente, R$ 270 bilhões no primeiro semestre, sem contar as amortizações (pagamento do principal da dívida)”. Isso quer dizer que ao contrário do que a mídia faz propaganda, não é a previdência e os gastos sociais que estão trazendo prejuízos aos cofres públicos, mas sim os próprios juros e o sistema da dívida pública que fazem com que ela não pare de crescer.

O mito do “inchaço” da máquina pública não traz a tona os problemas centrais que devem ser discutidos pela sociedade brasileira como o papel do Estado, os investimentos e reformas estruturais necessárias e a própria auditoria da dívida púbica. Um país de capitalismo dependente como o Brasil, possui diversas assimetrias e desigualdades sociais que não se resolvem pela saída neoliberal do mercado que ao contrário sinaliza o tempo todo para a penalização dos trabalhadores e trabalhadoras, basta observar o comportamento e posições de grandes empresas e corporações frente à contrarreforma trabalhista e a contrarreforma da previdência. A proposta de medida provisória do governo federal faz parte de um horizonte estratégico do capital que para garantir/ampliar seu padrão de acumulação tem pelo menos três eixos básicos: 1) privatizações de serviços e empresas estatais, 2) conversão de direitos sociais em produtos mercadológicos e financeiros, 3) desregulamentação, quebra, fragmentação e enfraquecimento de mecanismos de resistência/defesa dos trabalhadores e trabalhadoras. Os efeitos do avanço desse ideário neoliberal serão ainda mais desastrosos para a população trabalhadora e jogará a economia brasileira ainda mais para baixo, aumentando a concentração de renda, a pobreza e o desemprego.

A estabilidade do servidor público deve ser extinta?

A estabilidade do servidor público é uma garantia constitucional que visa à manutenção do interesse público, constância e eficácia da administração pública. Ao contrário do que se se propaga, reduzir ou até mesmo extinguir a estabilidade do servidor público não resolverá os problemas da eficiência dos serviços prestados na garantia de um Estado Democrático de Direito, pelo contrário, isso irá se agravar. Trata-se de um mecanismo coercitivo de gestão que aprofundará ainda mais a lógica do patrimonialismo que torna a coisa pública como extensão do interesse privado de chefias e governos, da perseguição política aos subordinados que se contraporem (mesmo por motivos legítimos) aos seus superiores na hierarquia administrativa, do clientelismo que irá facilitar o mercado de indicações, proteções e privilégios dos cargos e funções públicas. Isso certamente repercutirá na qualidade dos serviços prestados à população em um sentido negativo uma vez que, afeta diretamente nas condições do servidor público em manter uma continuidade e regularidade no desempenho de suas funções ao ficar suscetível às pressões externas em decorrência das vontades privadas e políticas dos governantes e do poder econômico.

Vale alertar que o governo não abrirá mão de uma tática utilizada em outros momentos de existência do famigerado PDV que é o assédio moral e a propaganda de promessas de vantagens financeiras e de melhorias do padrão de vida social. Em tempos de demagogia do empreendedorismo como solução econômica e ascensão social para os de baixo, os trabalhadores e trabalhadoras do serviço público podem estar caindo em uma grande armadilha e ilusão frente às supostas vantagens econômicas do PDV. As experiências do PDV sempre demonstraram que uma maioria dos trabalhadores e trabalhadoras que apostaram na abertura de negócios faliram, levando a um quadro de grandes dificuldades financeiras, que repercutiram em várias situações de adoecimento (principalmente de ordem psíquica) e até mesmo casos de suicídios.

Nossa única alternativa: a resistência e luta política enquanto classe trabalhadora

Nesse sentido e por tudo o que foi exposto, é necessária uma intensa mobilização, solidária e coletiva de todos nós servidores públicos para enfrentar mais esse duro ataque aos nossos direitos, independentemente dos projetos e visões de mundo que possamos ter. Devemos buscar também o apoio e diálogo com a população (principalmente da classe trabalhadora) que deve ser esclarecida dos impactos negativos dessas medidas na qualidade dos serviços públicos prestados e na permanência de políticas públicas, que asseguram uma estrutura mínima de direitos sociais, mesmo reconhecendo todos os limites da capacidade do Estado Democrático de Direito ser uma realidade brasileira para todos e todas. Não podemos vacilar em relação a identificar quem podemos contar nessa luta e quem se coloca como obstáculo. Certamente a grande mídia, movimentos de direita como o Movimento Brasil Livre (MBL), o grande empresariado e o governo ilegítimo de Michel Temer (juntamente com sua base aliada no Congresso e no Poder Judiciário), não são nossos aliados e deles não devemos alimentar nenhuma expectativa. Chegou o momento de nos unir enquanto classe trabalhadora, superar divergências pontuais e direcionar nossa luta política contra todos os que sustentam essa ordem atual da política-econômica brasileira.

1 de agosto de 2017