Personalidade do mês de Fevereiro: Mãe Mirelli de Oxossi

Por Isley Borges – Jornalista da ADUFU Seção Sindical, pesquisador e produtor cultural.

 

 

“No meu tambor ninguém toca!”

 

Quando Mãe Mirelli de Oxóssi me ensinou a importância da resistência

 

Mãe Mirelli de Oxóssi é filha de Mãe Irene de Nanã. As duas mulheres negras são lideranças religiosas da Tenda Coração de Jesus, terreiro de Umbanda de Uberlândia, que no último ano completou 70 anos. As histórias dessas mulheres se confundem com a história do espaço sagrado, que é de resistência, cuidado e tradição. Espaço que evidencia a força das mulheres negras, que não soltam a rédea da vida jamais.

Muitas vezes adentrei a Tenda Coração de Jesus e, por muitas vezes, fui recebido por essas duas mulheres. Conheci Mãe Mirelli de Oxóssi na universidade. Ela é graduada em História e a sua trajetória acadêmica reflete a sua luta pelos direitos dos povos de terreiro. Terreiro, um espaço comunitário. Terreiro-comunidade para os irmãos de fé, (re)enraizamento de indivíduos, culturas híbridas. Comunidade porque é o lugar de muitos, espaço de acolhimento e pertencimento. E porque representa a resistência de um povo, a potência de (re)territorialização de uma diversidade de nações, porque fascina pois diferente é. Terreiro é identidade.

Mas terreiros, infelizmente, ainda sofrem com a intolerância religiosa de um país majoritariamente cristão. “O capeta chefe está aqui. Quebra tudo. Arrebenta as guias todas. Todo mal tem que ser desfeito, em nome de Jesus. Desvenda esse mistério que está embaixo dessa saia! Arrebenta as guias desse demônio que está aí!”. São esses os dizeres de um indivíduo enfurecido, advindo do tráfico e evangélico, que ecoam em vídeo que mostra uma ialorixá (sacerdotisa do candomblé), Carmem Flores, destruindo os objetos sagrados de seu templo religioso, no interior do Rio de Janeiro. Dias após o ocorrido, o Portal UOL publicou reportagem informando que Flores havia deixado o Brasil e iria pedir asilo à Suíça, já que as ameaças continuavam pelo telefone.

A teologia da batalha espiritual ganha ênfase nas últimas décadas no Brasil. Desde o final da década de 1970, quando desponta o neopentecostalismo, última onda a surgir entre os pentecostais, emerge também a noção de que o mundo é dividido entre forças do bem e do mal, forças estas permanentemente em tensionamento, conflito. É como afirmar que as influências divinas e malignas seriam destrutíveis umas às outras na realidade do mundo material e perceptual.

A desinformação e o preconceito são utilizados por muitos neopentecostais para legitimarem o discurso de intolerância religiosa. Mãe Mirelli conta que a sua religiosidade passa por um processo de desconstrução e ressignificação, sendo utilizada de modo fantasioso por ignorantes que não entendem a missão das entidades umbandistas:

“Para legitimar a fala deles, utilizaram o culto afro (principalmente os guardiões e as pomba-giras). ‘Olha, você tá assim e assim? É porque tem alguém fazendo alguma coisa pra você’. E eles fantasiam. ‘Pegaram terra de cemitério, pegaram isso, pegaram aquilo, pra fazer mal pra você’. Por ignorância, eles não sabem que os exus, os caboclos, os preto-velhos, os orixás, eles estão aqui pra fazer o bem, para trabalhar.”

Durante a nossa conversa, Mãe Mirelli aborda uma problemática tratada com esmero pela jornalista Stela Guedes Caputo (2012), em obra intitulada “Educação dos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças no candomblé”: o modo como as crianças que se inserem nas religiões afro-brasileiras são tratadas socialmente, revelando momentos de sua infância que denotam a maneira como Mirelli lidava com a intolerância religiosa na escola:

“Eu nunca aceitei me chamarem de macumbeira e falarem que a minha mãe era feiticeira. Eu dizia: ‘Eu não sou macumbeira não! Macumbeiro é alguém que toca um instrumento africano!’. Desde muito cedo, eu tentei retirar essas associações depreciativas (…) Hoje nós conscientizamos as crianças. Ensinamos a elas a falarem sobre o que as entidades fazem, qual é orixá deles, qual é a essência da religião deles. Ensinamos as crianças a saberem dar respostas quando eles são atacados, na escola ou em qualquer outro lugar.”

O diálogo com Mãe Mirelli de Oxóssi, mulher, negra, liderança religiosa de Umbanda demonstra a importância da resistência do povo negro. Resistir é conservar-se firme, não sucumbir, não ceder. Ela conta, muito emocionada, de uma experiência de intolerância religiosa vivenciada por ela e pelos seus na Tenda Coração de Jesus:

“Eu já senti na minha pele a intolerância religiosa. Um dia o nosso vizinho chamou a polícia. Era uma data importante para nós: sexta-feira da paixão. Os trabalhos começam às seis da manhã e vai até onze da noite. O policial achava que chegaria aqui e encontraria um monte de bobo, de bocó. E ele me disse: ‘Mirelli, se você não parar de tocar o seu tambor, eu vou levar todos vocês presos’. E eu disse: ‘Não senhor! O senhor está aqui pra me defender, pra me dar a liberdade de eu cultuar os meus orixás, os meus preto-velhos, os meus caboclos’. E eu falei: ‘No meu tambor ninguém toca! Porque o meu tambor é sagrado e tem alguém que cuida e zela dele’.”

O vizinho chamou a polícia devido ao “barulho” dos atabaques. Como cultuar as entidades e orixás, convocados pelo toque no tambor e pelas vibrações geradas pelos toques e pelas vozes, se o volume do som dos atabaques é controlado pelo poder público (o mesmo poder público que deveria garantir a liberdade de crença e expressão de fé)? O que pensava a autoridade policial ao invadir um templo religioso e impedir o culto alheio? Entrariam, também, em uma igreja cristã e pediriam para que o som tivesse o seu volume reduzido?

Aprendamos com Mãe Mirelli de Oxóssi a difícil tarefa de resistir. Aprendamos com ela a importância da valorização da cultura afro-brasileira. Aprendamos com ela a cuidar dos nossos tambores, dos nossos símbolos, da nossa cultura e da nossa ancestralidade.

 

Isley Borges é Jornalista da ADUFU Seção Sindical, pesquisador e produtor cultural. Doutorando em Estudos Literários pela Universidade Federal de Uberlândia. Dofonitinho de Oxóssi no Centro Cultural Orè – Egbé Ilè Ifá. Descobre a cultura afro-brasileira todos os dias, e se encanta por ela.

 

 

Saiba mais sobre a iniciativa “Personalidade do Mês” em: http://bit.ly/2uF1zMQ

 

28 de fevereiro de 2020