Personalidade do mês: João Nery

 

Texto: Guilherme Gomes
Antes de conhecer essa personalidade, se olhe no espelho! Pode ser até pela câmera frontal do celular. Imagine se essa mirada revelasse a imagem de uma pessoa que não seja você. Ou mais: imagine se depois de tantos anos de vida, tivesse que renunciar a profissão, ao estudo e a carreira para se tornar diferente dessa pessoa que disseram ser você, mas finalmente encontrar seu eu. Esse “erro de pessoa” é a definição para o que João W. Nery e vários homens trans passam a vida toda, já que não conseguem se identificar em um corpo que não é seu. Entretanto, João Nery, primeiro homem trans a fazer cirurgia de redesignação sexual no Brasil na década de 1970, deixa um legado de vivências de construção de uma outra masculinidade – muito diferente da compulsória alinhada ao genital e tóxica à maior parte da sociedade, principalmente aos próprios homens.
 
Filho de pais que se opuseram à sua redesignação sexual – o que inclui retirada dos seios, do útero e dos ovários – aos 25 anos, viajando para Europa, João Nery toma a decisão de buscar essa cirurgia tão necessária para sua existência. Assim, em 1977, após negativas de médicos e psiquiatras, João realiza sua cirurgia de forma clandestina, no intuito de se reconhecer no espelho. Nessa época, João já havia iniciado seu mestrado em Psicologia e dava aulas em três faculdades, tendo anteriormente trabalhado como taxista depois das aulas da faculdade para conquistar sua independência financeira.
 
Na faculdade, também se preocupava com as causas estudantis e foi enquadrado pelo Decreto número 477 durante a ditadura por “atentar contra a segurança nacional na universidade”. A sua decisão de redesignação foi inquestionável e contrária às convenções médicas brasileiras e sociais, já que João encarava as questões de sua transgeneridade: o corpo que não era seu, a “monstruação”, os seios e, principalmente, o olhar do outro.
 
Após sua redesignação, João Nery conseguiu viver uma vida plena: casou-se três vezes, uma delas tendo um filho, Yuri. Sua vida, entretanto, é marcada por incompreensões, já que para ser reconhecido como homem, recorreu a algumas ilegalidades, como ter dois CPFs para ser reconhecido como homem. Isso acabou provocando a cassação de sua profissão de psicólogo, em razão de sua “falsidade ideológica”, fazendo-o trabalhar em usina de concreto, em confecção, em vendas, como terapeuta corporal e ainda como técnico em computador. Após essa etapa de sua vida, nos idos dos anos 2000, começa-se a emergir mais contundentes as discussões a respeito de transexualidade masculina, o que permitiu João ser reconhecido como ativista, compartilhando sua trajetória e luta pelos direitos das pessoas trans.
 
João Nery, acometido por câncer de pulmão, partiu da vida corporal em 2018 aos 68 anos, às vésperas do segundo turno da eleição presidencial, o que o poupou, segundo entrevista de sua ex-mulher, de viver o que veio a acontecer com nosso país. Só que João Nery permanece vivo em publicações importantes para se refletir a vida de homens trans: Erro de pessoa: João ou Joana, de 1984 em que narra todas as contradições e sua transição. Este livro foi reeditado em 2012 com o título Viagem solitária: memórias de um transexual 30 anos depois. Em parceria com diversos nomes para as causas trans, como Amara Moira, Laerte Coutinho, Jaqueline Gomes de Jesus, dentre outros, lança em 2017 o Vidas trans: a coragem de existir. Ainda e às vésperas de sua morte, Nery lutou para terminar seu último livro, lançado após sua morte em 2019, com o título Velhice Transviada. João viveu sua vida rodeado e em contato com pessoas que ressignificaram a sua luta: Darcy Ribeiro, Paul B. Preciado e muitas pessoas trans que enxergaram nele o legado de suas lutas.
 
Não há como poupar palavras para homenagear e reconhecer a luta de João Nery pela causa trans. O projeto de lei batizado com o seu nome, proposto na Câmara em 2013 pelos então deputados Jean Wyllys (PSOL) e Érika Kokay (PT), não foi para aprovação em tempo hábil. Todavia, em 1º de março de 2018, os efeitos previstos na lei foram aprovados pelo Supremo Tribunal Federal: o direito de alterar o nome e o gênero no registro civil sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo. João viveu essa vitória ou mais que isso: antes de tudo ser discutido, construiu essa vitória contra o status quo e sofreu os efeitos de seu enfrentamento em nome de construção da masculinidade trans dele e de tantos outros. João Nery, presente!
 

18 de maio de 2020